sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Sankt Pauli e sua identidade cultural

O escudo do Sankt Pauli. (Foto: blogdovalente.blogspot.com)

Fundado em 15 de maio de 1910 (ou seja, já centenário), no bairro de Sankt Pauli, em Hamburgo, na Alemanha, o Fußball-Club Sankt Pauli von 1910 e.V. não é um clube de grandes feitos em campo. Possui um título da 2. Bundesliga (equivalente à 2ª divisão alemã) em 1976-77 (Grupo Norte), um da Regionalliga Nord em 2006-07 (na época, equivalente à 3ª divisão. Em 2008, com a introdução da 3. Liga, passou a ser a 4ª divisão) e 3 títulos da Oberliga Nord em 1980-81, 1982-83 e 1985-86 (na época, equivalente à 3ª divisão. No período de 2004 a 2008, passou a ser a 4ª divisão alemã, abaixo da Regionalliga Nord. E com a introdução da 3. Liga, a Oberliga Nord deixou de existir).

Porém, quero mostrar aqui que o Sankt Pauli vai além disso.

Alternando entre acessos e rebaixamentos, o Sankt Pauli era apenas um clube tradicional de seu país, até chegar na metade dos anos 1980. A mudança da região de seu estádio da região do porto para uma região próxima a Reeperbahn, região mundialmente por conhecida por ser o centro da vida noturna da cidade. Logo começaram a surgir torcedores e, com eles, várias ideias que iriam construir uma identidade exclusiva do clube, que começaram a dar notoriedade ao mesmo.

Cartaz escrito "Sankt Pauli contra a direita", em alemão. (Foto: http://www.antibayern.de/dagegen.htm)

Os torcedores do Sankt Pauli adotaram um próprio símbolo não oficial (uma caveira com ossos cruzados), deram um clima de festa para as arquibancadas durante os jogos e implantaram ideais políticos de esquerda, sendo declarados antiracistas, antissexistas e principalmente antifascistas, o que fez com que o clube fizesse algo inédito dentre todas as torcidas da Alemanha: Expulsar todos os adeptos destas ideologias (nazistas, fascistas e neonazistas), que inspiraram muitos hooligans pela Europa.

E o clube também reforçou essas ideias, sendo o primeiro na Alemanha a banir oficialmente as atividades e símbolos nacionalistas de direita no estádio. Uma ação marcante do clube, em conjunto com os torcedores, foi a campanha "Viva con Agua de Sankt Pauli" (que tem como missão melhorar o abastecimento de água potável nos países em desenvolvimento), que começou após um incidente em Cuba, em 2005, e o jogador Benjamin Adrion (jogador do Sankt Pauli na época), que estava se concentrando na região e examinou as condições de vida. Em conjunto com a ONG alemã Welthungerhilfe, ele começou a iniciativa em Havana. Hoje, mais de 150 creches na cidade têm dispensadores de água potável. Além de fornecer ajuda para Cuba, vários outros países são beneficiados pelo Viva con Agua, como Quênia, Camboja e Benin.

A famosa bandeira da caveira com ossos cruzados, o símbolo não-oficial da torcida e do clube. (Foto: http://jeffkavanagh.com/2013/01/23/j/)

Nos anos 1990, a mídia alemã começou a notar a construção desta identidade cultural do Sankt Pauli, e focou principalmente na parte punk da torcida na trasmissões dos jogos. Logo, começaram a surgir apelidos como "Die Freibeuter der Liga" (Os Piratas da Liga) e "das Freudenhaus der Liga" (O Bordel da Liga, ou literalmente Casa da Alegria). O Sankt Pauli virou referência do punk e seus subgêneros, influenciando várias bandas pelo mundo, principalmente pela visão libertária e revolucionária do clube. A famosa banda Bad Religion jogou um amistoso de caridade contra o terceiro time do Sankt Pauli em 2000.

O Sankt Pauli também o clube que mais cultua o rock and roll no mundo, já que a sua torcida, em dias de jogos, leva ao estádio guitarras e amplificadores para tocar músicas de bandas clássicas do gênero, como AC/DC e Sex Pistols. Na abertura dos jogos em casa, o som do estádio sempre toca a música "Hells Bells", do AC/DC, e depois de cada gol que o time faz , o estádio toca "Song 2", do Blur. O clube já fez pré-temporada diversas vezes em um festival de heavy metal alemão chamado Wacken Open Air.

Greg Hetson, guitarrista do Bad Religion. (Foto: http://www.thebrpage.net/news/?newsID=1665)

O crescimento da média de público foi absurda: Em 1981, eram apenas 1.600 por jogo. No final dos anos 1990, já eram mais de 20.000. E até hoje, se for comparar, a média atualmente é absurdamente maior que os times da 2. Bundesliga (onde o Sankt Pauli está hoje), e até mesmo que alguns clubes da primeira divisão, a Bundesliga, até porque segundo um estudo recente apontou que atualmente o clube tem 11 milhões de torcedores espalhados pela Alemanha. Há aproximadamente 200 fã-clubes do Sankt Pauli certificados, muitos deles fora da Alemanha. O maior fã-clube fora da Alemanha é a torcida "El Grano", de Valladolid, na Espanha. Outro orgulho do Sankt Pauli é ser o clube alemão com o maior número de mulheres em sua torcida.

(Como não poderia ser diferente, há fãs brasileiros: grupo e página do blog no Facebook, e Twitter, para os interessados)

Uma grande curiosidade é que o Sankt Pauli teve de 2002 a 2010 o primeiro presidente de clube de futebol abertamente homossexual, chamado Corny Littmann. E com a acentuação da questão da homofobia na sociedade recentemente, neste ano o clube hasteou a bandeira arco-íris, o grande símbolo do movimento LGBT, e deixará permanentemente, para marcar sua posição a favor do mesmo.

Clubes que fazem parte da ANTIFA, que luta contra o fascismo. Da esquerda para a direita: AC Omonia (Chipre), AS Livorno Calcio (Itália), Hapoel Tel Aviv (Israel), Standard Liège (Bélgica), Sankt Pauli, AEK Atenas (Grécia), Olympique de Marseille (França), Celtic (Escócia), Adana Demirspor (Turquia), Athletic Bilbao (Espanha), Club América (México) e Iraklis Salonica (Grécia). (Foto: )

O centro de atividade dos torcedores é o "Fanladen St. Pauli", que têm amizade com torcidas espalhadas pelo mundo, algumas pelo ideal antifascista (como pode se ver na imagem), e outras como a Ternana (Itália), o Bohemians 1905 (República Tcheca), o Babelsberg 03 (também da Alemanha) e o Bristol Rovers (Inglaterra), sendo o último por causa da imagem de "piratas". Eles tambem têm amizade com a "Schickeria München", do Bayern München, tanto que às vezes o símbolo da Schickeria München é mostrado no Millerntor Stadion. Mas nenhuma dessas amizades é mais forte que a com os torcedores do Celtic.

Símbolo da união entre os torcedores do Sankt Pauli e a CSC (Celtic Soccer Crew). (Foto: http://celtic.theoffside.com/celtic/interview-with-our-pals-st-pauli.html)

Com identificação nos ideais políticos, semelhanças no estilo festeiro e por cantarem o famoso "You'll Never Walk Alone" para estimular os jogaores, os acontecimentos que selaram a amizade das duas torcidas ocorreram em novembro de 2009. O Celtic foi jogar com o Hamburger SV na Alemanha e, como de costume, foi seguido por seus fanáticos torcedores. Um grande parte de toredores do Sankt Pauli seguiram os do Celtic e foram para o jogo também. Em retaliação, os torcedores do Hamburgo exibiram a bandeira do Reino Unido (símbolo típico do Rangers, rival do Celtic) com o canto norte-irlandês "No Surrender". Em resposta, os torcedores do Celtic, junto com os do Sankt Pauli, gritavam as provocações típicas dos torcedores Sankt Pauli durante todo o jogo, que acabou parecendo mais um derby local. No dia seguinte, os torcedores do Celtic decidiram acompanhar os do Sankt Pauli novamente, mas dessa vez para um jogo do Sankt Pauli em casa contra o Fortuna Düsseldorf.

Antes da conclusão, uma coisa que me deixou ainda mais intrigado: Em 2009, os dirigentes do Sankt Pauli estabeleceram uma série de Princípios Fundamentais. Vai deixar o texto ainda maior do que já é, mas acho que vale a pena ler:

"1 - Em sua totalidade, composto por membros, funcionários, torcedores e dirigentes honorários, o FC St. Pauli é uma parte da sociedade, que é cercado e também afetado direta e indiretamente pelas mudanças sociais nas esferas política, cultural e social.
2 - O
St. Pauli FC está consciente da responsabilidade social que implica e representa os interesses dos seus membros, funcionários, torcedores e dirigentes honorários em matéria não apenas restrito à esfera do esporte.

3 - O St. Pauli FC é o clube de um determinado bairro da cidade, e é a isso que deve a sua identidade. Isto dá-lhe uma responsabilidade social e política em relação ao bairro e as pessoas que lá vivem.
4 - O
St. Pauli FC tem como objetivo colocar em um certo sentimento pela vida e simboliza autenticidade esportiva. Isso torna possível para que as pessoas se identifiquem com o clube, independentemente de todos os sucessos desportivos que pode alcançar. Características essenciais do clube que incentivam esse sentimento de identificação devem ser honrados, promovidos e preservados.
5 -
Tolerância e respeito mútuo nas relações humanas são importantes pilares da filosofia St. Pauli .
6 -
Embora o St. Pauli FC consiste em muitas seções diferentes hoje, sempre foram definidas a partir dos seus começos, tanto interna como externamente, por seu compromisso com o futebol .
7 -
Juntamente com os requisitos legais obrigatórios, que são obrigatórias para todos, as regras estádio e o Código de Conduta para as excursões do Fanladen são a base para as atividades dos membros, funcionários, torcedores e dirigentes honorários de St. Pauli FC .
8 -
Cada indivíduo e cada grupo deve examinar constantemente suas ações presentes e futuras de uma forma auto-crítica, e estar consciente de sua responsabilidade para os outros. Os adultos não devem esquecer que eles estão agindo como um modelo, para crianças e jovens acima de tudo.
9 -
Não há "melhores" ou "piores" fãs. Qualquer pessoa pode dar expressão à sua natureza como um fã, contanto que o seu comportamento não esteja em conflito com as estipulações acima.
10 - O
St. Pauli FC vai continuar a ser uma instituição hospitaleira. O clube permite aos seus hóspedes amplos direitos, mas também espera que eles mostrem a apreciação adequada da hospitalidade que recebem.
11 -
A parte ativa dos fãs (ou seja, principalmente os torcedores do clube comprometidos e realmente presentes no dia do jogo) constitui a base para o impacto emocional do futebol como um esporte, que por sua vez é a base para as atividades de marketing bem sucedidas do St. Pauli FC .
12 -
Patrocinadores e parceiros de negócios do FC St. Pauli e seus produtos devem estar em harmonia com a política do clube e da responsabilidade social do clube. Especificações mais detalhadas serão encontradas em diretrizes de marketing do clube (Vermarktungsrichtlinen).
13 -
Ao trabalhar com as associações responsáveis​​, o St. Pauli FC vai tentar promover uma decisão rápida sobre o tempo de reprodução e a hora de iniciar que são convenientes para os fãs.

14 - O essencial no esporte é o jogo das equipes, de modo que este deve ser visto como sendo de importância central. A atmosfera é determinada pela interação entre os fãs e jogadores. O programa de acompanhamento deve ser distinguido por sua objetividade e da prestação de informações relativas ao clube e distrito da cidade.
15 -
A venda de bens e serviços no St. Pauli FC deve ser caracterizada, à parte de considerações econômicas, pelos princípios fundamentais da compatibilidade social, a variedade de serviços oferecidos, sustentabilidade e ecologia. Meios de pagamento vindo em consideração devem ser compatíveis com a situação dos fãs. Em casos de falta de meios, os detentores de bilhetes de época e os membros têm direitos de prioridade de compra.
"


Em um momento do futebol em que dirigentes pensam apenas nos próprios interesses e quase todas as torcidas organizadas só pensam em brigar e causar problemas para elas mesmo e para o clube, é completamente admirável o caso do Sankt Pauli, e acho que estas ideias deveriam servir de base para o máximo de dirigentes de clubes e torcidas possíveis, no mundo inteiro.

2 comentários:

  1. Muito legal o texto :) Tenho um blog, que desde 2009, fala sobre o time. É o St. Pauli Brasil.
    Abraços,

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